Ao longo da história dos golpes que instalaram ditaduras no Brasil, o Sindicato sofreu intervenções que levaram os bancários a perder salário, direitos e liberdades
Toda vez que uma ditadura se instala, que um golpe assola a democracia, os trabalhadores são os primeiros a perder. Esse fato é comprovado pela história. E para retirar direitos dos trabalhadores, as ditaduras são certeiras: é preciso enfraquecer entidades de representação da classe trabalhadora, os sindicatos.
Criados a partir da primeira metade do século 19, os sindicatos são definidos como organizações de representação dos interesses dos trabalhadores para fazer frente ao poder dos empregadores na relação sempre desigual entre o capital e o trabalho. Era uma reação da classe trabalhadora, já naquela época, às precárias condições de trabalho e remuneração impostas a eles pelos patrões. Desde então, os sindicatos têm exercido papel fundamental na luta por uma sociedade justa e democrática.
É somente no estado democrático de Direito, onde há espaço para o diálogo social e acesso à Justiça, que a sociedade encontra a liberdade necessária para atuar na defesa da dignidade dos trabalhadores, na redução das desigualdades.
Assim, é natural que os sindicatos, defensores da classe trabalhadora, sejam também defensores da democracia. Não por acaso, sempre que uma ditadura tomou o poder no Brasil, os sindicatos estiveram entre as primeiras organizações a sofrer intervenções, com representantes atrelados aos patrões ou à classe militar ocupando as funções dos sindicalistas. O resultado: perseguição aos dirigentes sindicais, perda de direitos dos trabalhadores, rebaixamento de salários.
Os registros apontam que o Sindicato dos Bancários de São Paulo sofreu pelo menos três intervenções em períodos ditatoriais na história do Brasil: logo após o Estado Novo de Getúlio Vargas e durante a ditadura civil militar que tomou o país entre 1964 e 1985. E em todos os casos os trabalhadores perderam não somente suas liberdades, mas seu poder de negociação, sua força, e até a alegria que faz parte da luta e de conquistar avanços para a esmagadora maioria dos brasileiros.
“A democracia – num país historicamente marcado por desigualdades seculares que ainda precisam ser superadas – acaba sendo falha em muitos aspectos, principalmente para a parcela mais vulnerável da população a quem são negados vários direitos, inclusive o direito à vida”, observa a presidenta do Sindicato, Neiva Ribeiro, em protesto contra os assassinatos cometidos por policiais militares sob o governo Tarcísio, em São Paulo. “Mas é somente na democracia que podemos denunciar, lutar por direitos, seja dos mais vulneráveis, seja dos trabalhadores. E é o único caminho, inclusive, para se enfrentar e reduzir as desigualdades. Fora da democracia, todos perdemos”, destaca a dirigente sindical.
Todos perdemos. Em 20 de janeiro de 1971 desaparecia o deputado federal Rubens Paiva. Eleito pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em 1962, por São Paulo, Paiva foi morto pela ditadura militar logo após seu sequestro pelos militares. Sua mulher, Eunice Paiva, escreveu às autoridades brasileiras à época uma carta, tentando descobrir o paradeiro do marido e relatando os horrores vividos por ela e uma de suas filhas, que chegaram a ser presas também.
“Rubens é um homem de bem, pai de família exemplar, engenheiro competente, cidadão probo e honrado, empresário responsável e capaz. Deputado federal, por São Paulo, teve seus direitos políticos suspensos em 1964. Não viu contra si, no entanto, instaurar-se nenhum inquérito policial militar ou processo penal”, afirmou, para depois questionar. “Onde estão, afinal, os compromissos do país, assumidos, solenemente, em suas Constituições, desde o alvorecer da República, e no âmbito internacional, como nação cristã e civilizada, através da adesão às Declarações Universais dos Direitos do Homem da ONU e da OEA? Como admitir a insegurança terrível dos sequestros ou raptos, tornados oficiais?”
Somente 25 anos depois a advogada, que teve sua história relatada pelo filho Marcelo Paiva no livro Ainda Estou Aqui, recebeu o atestado de morte do marido. “Sensação estranha a de que um atestado de óbito seja um alívio.” A frase é dita também no filme de mesmo nome, sob direção de Walter Salles, com interpretação magistral de Fernanda Torres, como Eunice, Selton Mello, como Rubens. O filme retrata: sob uma ditadura, qualquer pessoa é alvo.
Estado Novo
Desde sua fundação, em 1923, o Sindicato mantém forte atuação, não somente em relação aos ganhos salariais, mas também na defesa da saúde e das condições de trabalho. Na década de 1930, os bancários sofriam com a tuberculose, vitimados por ambientes de trabalho impróprios, jornadas extensas e tempo limitado para as refeições. É dessa época a luta pela jornada de seis horas, conquistada de forma limitada em 1933, e estendida a todos os funcionários de bancos em 1957.
Essa conquista histórica se deu em um período de forte efervescência política no Brasil. O gaúcho Getúlio Vargas, militar, advogado e político, havia liderado a Revolução de 1930, depondo Washington Luís e dando fim à República Velha, também conhecida como República Café com Leite, na qual paulistas e mineiros se revezavam no poder. Vargas permaneceu no poder por 15 anos. De 1930 a 1934, como chefe de um governo provisório; de 1934 a 1937 como presidente eleito; e a partir de então, até 1945, como ditador após o golpe de estado que instituiu o Estado Novo.
Os trabalhadores já sofriam com a repressão. Sob risco de intervenção, a diretoria do Sindicato, então, decide renunciar na tentativa de preservar a categoria. A entidade é ocupada por uma diretoria que defendia a conciliação, via “acordo de interesses recíprocos entre patrões e empregados”. Listas com nomes de trabalhadores considerados “elementos extremistas” são levadas à Superintendência de Ordem Política e Social, por meio do Departamento Estadual do Trabalho. Torturas eram constantes, notadamente sob a Chefatura de Polícia da cidade do Rio de Janeiro, na gestão de Filinto Müller (1933-1942).
A categoria busca resolver suas reivindicações diretamente junto ao Ministério do Trabalho. Em vão. “A conjuntura política nacional era desfavorável aos trabalhadores, com suas organizações sendo duramente golpeadas pelo governo”, conta o livro “A História dos Bancários”, coordenado pelo historiador Dainis Karepovs, e que retrata os primeiros 70 anos do Sindicato (1923 a 1993).
A partir de 1942, atos antifascistas explodem Brasil afora, no âmbito da Segunda Guerra Mundial. O Estado Novo perde força. No Sindicato, em 1943, é eleita uma diretoria de esquerda que busca retomar a entidade para os trabalhadores. A posse, no entanto, só ocorre em 1945 com a queda de Getúlio e da ditadura imposta por ele.
É nesse período que tem início a chamada Guerra Fria que opõe Estados Unidos e a então União Soviética. No Brasil, é a deixa para desencadear, novamente, um processo de cerceamento das liberdades democráticas, com a repressão a militantes e intervenção nos sindicatos. Em 7 de maio de 1947, cerca de 400 entidades, entre elas os Bancários de São Paulo, passam a ser dirigidos por simpatizantes do patronato. A inflação sobe e os salários perdem poder aquisitivo.
Os bancários reagem, criando a União dos Bancários do Estado de São Paulo e as Comissões Pró-Salário Digno, que funcionam como sindicatos paralelos. Surgem novas lideranças, como Milton Marcondes, Salvador Losacco e Pedro Iovine que estariam à frente do Sindicato a partir de 1947.
Regime militar
Na década de 1960, notadamente a partir da segunda metade de 1963, forças de direita contrárias ao governo progressista do presidente João Goulart passam a conspirar pela sua derrubada. O golpe se concretiza em 1º de abril de 1964. E começam as perseguições, cassação de parlamentares, prisões arbitrárias e, claro, a intervenção nos sindicatos. O Ato Institucional nº 1, por exemplo, de 9 de abril de 1964, cassou os direitos políticos de 376 funcionários do Banco do Brasil à época.
A política econômica era baseada na recessão e no arrocho salarial. A livre negociação foi proibida e acordos anuais eram feitos, com fórmulas pré-estabelecidas para calcular reajustes. Em 1966, o governo militar acaba com os institutos de previdência e com o direito à estabilidade no emprego, instituindo o FGTS em seu lugar.
Apesar do golpe, a categoria tentava manter a mobilização, por meio das comissões de bancos. Mas vem 1968 e o fechamento completo do regime militar. É decretado o AI 5, em 13 de dezembro daquele ano: o Congresso Nacional, as assembleias estaduais e as câmaras municipais são fechadas. Parlamentares, intelectuais, artistas e lideranças populares têm seus direitos políticos cassados. A Lei de Segurança Nacional leva à abolição do habeas corpus para quem nela se enquadrasse – ou seja, qualquer cidadão contrário ao regime militar.
Para o movimento sindical isso significou banimento das lideranças que lutavam pelos direitos dos trabalhadores: muitos foram presos e até assassinados pelos órgãos de repressão. O ex-presidente do Sindicato em 1969, Salvador Tolezano, seria assassinado em um crime sobre o qual sempre pairaram muitas dúvidas.
O tal “milagre brasileiro”, com crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) alavancado por empréstimos externos, significou também aumento da concentração de renda nas mãos dos mais ricos.
A partir da segunda metade da década de 1970 tem início a chamada distensão “lenta, gradual e segura”. Mas a linha dura do regime militar não aceitava mudanças. São dessa época as mortes sob tortura do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, e do operário Manoel Fiel Filho, em 1976.
A intervenção de 1983
Em 1979, os bancários elegem Augusto Campos, da Oposição Bancária, contra os pelegos, e tem início o período de retomada do Sindicato para os trabalhadores. A nova diretoria foi escolhida com propostas de luta contra o arrocho salarial, pela liberdade e autonomia sindicais e a construção de uma central única de trabalhadores. Em 1983 nasceria a CUT.
Mas a ditadura, mesmo em seus últimos suspiros, ainda fazia estragos. Em 1979, diretores foram enquadrados na Lei de Segurança Nacional e na Lei de Greve que proibia paralisações no setor; uma bomba explodiu no Sindicato em 1981. E em 1983, veio uma nova intervenção no Sindicato.
Folha Bancária denuncia intervenção e passa a circular como FB Livre, mantida com o apoio da categoria (Cedoc)
Como resultado da política de endividamento dos governos militares, os trabalhadores pagaram a conta com decretos de arrocho salarial: os reajustes foram, durante anos, abaixo do aumento do custo de vida. “A política econômico-social dos governos militares desde 1964, levou ao empobrecimento da população, por meio de uma fantástica concentração de riqueza. Evidentemente, esta situação veio de braços dados com um desemprego jamais vistos até então”, lembra o livro História dos Bancários.
O Sindicato desenvolve atividades de luta contra esses pacotes e a repressão vem. Em 20 de julho de 1983, a Polícia Federal invade a entidade, prende oito dirigentes, o jornalista responsável pela Folha Bancária, Julio de Grammont, e quatro ativistas. Um dia depois é decretada a intervenção e nomeada uma junta interventora.
“Consciente de que sua autoridade provinha da representatividade que lhes foi dada pela categoria, a diretoria do Sindicato reitera sua disposição de luta”, relata trecho da Folha Bancária de 27 de julho de 1983. O jornal continuaria circulando, graças à contribuição dos trabalhadores, como Folha Bancária Livre. E é mantida uma permanente campanha contra a intervenção. Essa atuação corajosa garantiu que a categoria tivesse pelo menos o pagamento integral da inflação como reajuste salarial.
Em 1985, uma nova diretoria é eleita, tendo Luiz Gushiken na presidência, e os absurdos 20 meses de intervenção chegam ao fim.
Novos Golpes
Orai e vigiai, diz sempre outro personagem chave dessa época, o bancário do então Banerj e ex-presidente do Sindicato, Gilmar Carneiro.
Os direitos dos trabalhadores estão sempre na mira dos que chegam ao poder para favorecer ainda mais os já privilegiados pela terrível concentração de renda que é marca registrada do nosso país.
Essa situação é flagrante do golpe iniciado que, em 2016, depôs Dilma Rousseff da presidência da República. Assumiu, para sacramentar de vez a clara situação de golpe, seu vice, Michel Temer.
Em pouco mais de um ano, o político do Centrão conseguiu aprovar uma reforma trabalhista que representou a maior retirada de direitos dos trabalhadores já vista na história do Brasil. “Só na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), foram 130 alterações. Nenhuma delas ampliou direitos dos empregados, frente aos empregadores”, lembra reportagem do Brasil de Fato.
Em março de 2016, um prenúncio do que viria. O Congresso aprova, com Temer, “terceirização irrestrita”, mesmo de atividades-fim das empresas.
A reforma trabalhista de Temer e o golpe contra os trabalhadores autorizou, por exemplo, o “trabalho intermitente”, por meio do qual o trabalhador deve estar à disposição da empresa para o que ela precisar, do jeito que ela quiser. E pagando multa quando não atende à solicitação. Em 2019, esse tipo de contrato representou 19% das novas contratações com carteira assinada no Brasil, segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho e Emprego. E, apesar disso, 1/4 desses contratos nunca se concretizou. Ou seja, o trabalhador nunca foi chamado pela empresa.
Essa reforma também liberou a contratação de empregados via Pessoa Jurídica (PJ) ou Microempreendedor Individual (MEI). Milhões de pessoas foram demitidas e empurradas para a situação de informalidade ou de “trabalhador por conta própria”.
E dos 6 milhões de empregos prometidos pela equipe de Temer, somente 1 milhão foram criados até o ano 2020.
“O que a reforma de Temer fez foi substituir o trabalho formal, o assalariamento, com direitos e proteção social, pelo trabalho por conta própria, informal, favorecido por outras duas grandes medidas adotadas na reforma trabalhista: o enfraquecimento dos sindicatos e da Justiça do Trabalho”, disse a economista Marilane Teixeira, ao Brasil de Fato.
Tudo isso se somou ao fim do Ministério do Trabalho, ao desinvestimento nos órgãos de fiscalização, ao desmonte dos sindicatos. O “negociado sobre o legislado”, lá dos tempos da ditadura de Vargas, voltou a vigorar. O resultado da negociação entre patrão e empregado, em condições evidentemente desiguais, poderia se sobrepor ao texto da lei. E, para completar, o empregado que ingressar com ação trabalhista e perder, no tribunal, fica obrigado a pagar os custos processuais da empresa. O objetivo, segundo Krein, era “inibir as pessoas a reclamarem seus direitos”. Dois anos após a reforma, o número de ações trabalhistas caiu 32%.
Graças à força, à atuação do Sindicato e o poder de organização dos bancários, o negociado sobre o legislado acabou sendo usado a favor da categoria. A exemplo da vale-transporte, sobre o qual os bancários têm desconto menor de 4%, ao invés dos 6% previstos na legislação. “Nossa negociação coletiva é muitíssimo forte e se mantém cada vez mais forte por termos conseguido fazer de alguns desses limões da reforma trabalhista uma bela limonada. Mas só conseguimos isso porque temos um sindicato forte, uma categoria organizada nacionalmente, o que outras categorias de trabalhadores infelizmente não têm. Somos solidários a todos nessa luta”, explica Neiva Ribeiro.
E se o golpe de 2016 não apelou para intervenções físicas nas entidades sindicais, promoveu uma forte intervenção institucional, visando ao estrangulamento financeiro dos sindicatos. E isso foi feito, de duas formas: estimulando o boicote às contribuições por parte dos trabalhadores; e dificultando a organização por meio da precarização dos empregos.
Em 2019, Jair Bolsonaro, apoiador do impeachment e eleito após esse golpe, sancionar a reforma da Previdência tentada por Temer – com regras mais favoráveis para militares, sua base de apoio. A idade mínima para aposentadoria aumentou. E mesmo quem já contribuiu pelo tempo mínimo não pode mais se aposentar antes da idade mínima.
O ex-presidente militar ainda tentou aprovar propostas como a Carteira Verde e Amarela, em que o trabalhador abre mão de parte dos direitos em nome da preservação do emprego. Não conseguiu. Bolsonaro perdeu a eleição para Luiz Inácio Lula da Silva, em 2022. Mas não aceitou a derrota e novas tentativas de golpe seguem sendo tramadas. Se um novo golpe tiver sucesso, não tenha dúvida: os trabalhadores seremos os primeiros derrotados.
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