Dieese fortalece a luta dos trabalhadores

Há 70 anos, sem poder confiar nos índices oficiais de inflação, sindicatos de trabalhadores criaram o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos para desenvolver pesquisas que subsidiassem suas negociações

Com mais de 700 entidades sindicais associadas, Dieese chega aos 70 anos desenvolvendo pesquisas, assessorando negociações coletivas e promovendo formação (Crédito: Imprensa/Seeb-SP)
Com mais de 700 entidades sindicais associadas, Dieese chega aos 70 anos desenvolvendo pesquisas, assessorando negociações coletivas e promovendo formação (Crédito: Imprensa/Seeb-SP)

O ano de 1955 foi de imensa turbulência no Brasil. O país, após o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954, foi administrado por três presidentes, no período de pouco mais de um ano. João Café Filho era o vice de Getúlio e ficou na presidência até o mês de novembro de 1955, quando renunciou por motivos de saúde. Assume, então, Carlos Luz, presidente da Câmara dos Deputados. Ele, no entanto, foi impedido de continuar no cargo em 11 de novembro de 1955 por um movimento político-militar que tentou impedir a posse de Juscelino Kubitschek.

Eleito em outubro, JK assumiu a presidência em janeiro de 1956. A economia brasileira, diante do quadro político conturbado, enfrentava problemas, entre os quais os saltos inflacionários.

Os sindicatos, por sua vez, desconfiavam que os índices oficiais de inflação eram manipulados e prejudicavam os trabalhadores. Queriam contar com dados próprios para embasar suas negociações com os patrões.

Um grupo de 20 dirigentes sindicais de São Paulo, que vinha realizando mobilizações conjuntas por meio do Pacto da Unidade Intersindical (PUI), decide criar uma entidade dos trabalhadores, capaz de elaborar um índice confiável.

Assim nascia, em 22 de dezembro de 1955, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, o Dieese, com protagonismo dos bancários. O primeiro presidente da entidade foi Salvador Romano Losacco, bancário à frente também do Sindicato à época.

Salvador Losacco (em pé) era presidente do Sindicato quando, em 1955, articulou a criação do Dieese, que segue sendo fundamental para a classe trabalhadora (Crédito: Cedoc/Seeb-SP)
Salvador Losacco (em pé) era presidente do Sindicato quando, em 1955, articulou a criação do Dieese, que segue sendo fundamental para a classe trabalhadora (Crédito: Cedoc/Seeb-SP)

O dirigente foi o principal idealizador da instituição, lembra o ex-diretor técnico do Dieese, o sociólogo Fausto Augusto Júnior. “Losacco é o grande mentor da criação do Dieese. Foi uma construção conjunta de entidades sindicais, mas a idealização é dele. Baseado em experiências que conheceu na Europa, ele retorna com a ideia de criar uma universidade dos trabalhadores e o Dieese seria um departamento dela”, conta Fausto, atual presidente do Conselho Nacional do Serviço Social da Indústria (Sesi).

Dieese e bancários

Losacco articulou o apoio dos sindicatos dos metalúrgicos, dos jornalistas, das costureiras, dos condutores, da construção civil, entre outros. Foi também na sede do Sindicato, no Edifício Martinelli, o primeiro escritório do Dieese, entre 1955 e 1958.

Fausto destaca outro sinal da parceria entre as duas instituições: a produção dos índices de inflação que marcaram o início do Dieese. O Sindicato dos Bancários de São Paulo foi o primeiro a produzir um índice, no início da década de 1950.

“Na época os trabalhadores questionavam o cálculo da inflação usado para os reajustes dos trabalhadores. É dessa experiência dos bancários e da ideia de Losacco que surge a iniciativa de criar um órgão inicialmente para calcular o índice de inflação”, reforça Fausto. Em 1958 começa a ser calculado, em São Paulo, o Índice de Custo de Vida, o ICV Dieese.

Reportagem de 1977 reconhece a importância do Dieese e denuncia manipulação dos índices de inflação em 1973 (Crédito: Imagem de arquivo/Dieese)
Reportagem de 1977 reconhece a importância do Dieese e denuncia manipulação dos índices de inflação em 1973 (Crédito: Imagem de arquivo/Dieese)

Assista: 1955: bancários são responsáveis pela criação do Dieese

Ter um índice confiável fortalece a classe trabalhadora e seus argumentos quando, com negociações travadas pelos patrões, era necessário recorrer à greve. “Diante da alta da inflação, nos anos 1970, cresceu em importância a denúncia do Dieese contra os índices oficiais da ditadura. E isso vai dar início às grandes greves de 1978”, relata Fausto, autor de tese de mestrado sobre o tema. Bancários, professores e metalúrgicos vão construir esse grande movimento grevista que depois vai levar à fundação do PT e da CUT.

O Dieese teve também como presidentes outros dois bancários: João Vaccari Neto (1990) e Mário Sergio Castanheira (1998).

João Vaccari Neto, ex-presidente do Sindicato, esteve também à frente do Dieese em 1990 (Crédito: Cedoc/Seeb-SP)
João Vaccari Neto, ex-presidente do Sindicato, esteve também à frente do Dieese em 1990 (Crédito: Cedoc/Seeb-SP)

O Sindicato conta, ainda, com uma subseção do Dieese em sua sede e essa parceria é fundamental na vida dos bancários. “Os trabalhadores da categoria precisam ter dimensão da importância do Dieese nas suas vidas”, afirma a presidenta do Sindicato, Neiva Ribeiro. “Se há 70 anos fomos cruciais na fundação do Dieese, sete décadas depois a entidade segue fundamental na luta da classe trabalhadora”, avalia a dirigente, lembrando que as razões que levaram à criação do departamento se mantêm até hoje. “Os estudos, dados, pesquisas trabalhadas conjuntamente com o Dieese servem de base para nossas negociações com os bancos e com governos. Ao lado da mobilização, da luta e da organização em torno dos sindicatos, os números do Dieese estão no centro de todas as conquistas da categoria bancária, da classe trabalhadora em geral.”

O sociólogo Clemente Ganz Lúcio considera o Sindicato dos Bancários peça fundamental na existência do Dieese, na sua direção, no seu financiamento e no uso técnico que faz dessa importante ferramenta. “Toda a classe trabalhadora brasileira tem uma grande dívida com o Sindicato dos Bancários por ele ser um dos grandes protagonistas da fundação, sustentação e manutenção de uma entidade importante como é o Dieese”, avalia o ex-diretor-técnico do departamento, por mais de 15 anos.

Trabalhadores precisam ter dimensão da importância do Dieese em suas vidas, diz Neiva Ribeiro, uma das coordenadoras do Comando Nacional dos Bancários, na foto em negociação com a Fenaban: técnicos do Dieese, na retaguarda (Crédito: Luan Silva/Seeb-SP)
Trabalhadores precisam ter dimensão da importância do Dieese em suas vidas, diz Neiva Ribeiro, uma das coordenadoras do Comando Nacional dos Bancários, na foto em negociação com a Fenaban: técnicos do Dieese, na retaguarda (Crédito: Luan Silva/Seeb-SP)

Credibilidade e reconhecimento

Não é só na vida dos bancários que o Dieese faz diferença. Com mais de 700 entidades sindicais associadas, a instituição desenvolve pesquisas, assessora negociações coletivas e promove atividades de formação, como informa em seu site. A direção da entidade é formada por dirigentes de sindicatos, federações, confederações de trabalhadores e centrais sindicais filiadas ao Dieese.

Ao longo dessas sete décadas, conquistou credibilidade e reconhecimento nacional, internacional, e como instituição de utilidade pública. A Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos (PNCBA), por exemplo, criada em 1959 em São Paulo, é realizada atualmente em 27 capitais brasileiras. Ela acompanha o valor médio de 13 itens essenciais de alimentação. E o ICV verifica mensalmente a variação de preço de mais de mil itens de consumo.

Um dos produtos mais respeitados do Dieese é o cálculo do salário mínimo necessário para que o piso nacional possa efetivamente cumprir o preceito constitucional que o criou. E que justifica a política de valorização do salário mínimo criada no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com a participação do movimento sindical. Essa política foi mantida pela presidenta Dilma Rousseff, interrompida por Jair Bolsonaro e retomada por Lula em seu terceiro mandato. Consiste na aplicação de aumentos reais, baseados no crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), acima do índice oficial de inflação. O objetivo é recuperar o poder de compra do salário mínimo, que sustenta as economias de 66% dos municípios brasileiros. E o Dieese é, portanto, uma referência técnica para essa decisão política que moveu o movimento sindical, os governos progressistas e, com isso, a economia do país.

Dieese faz cálculo do salário mínimo necessário para suprir uma família de quatro pessoas: estudo serviu de base na luta que conquistou a valorização do piso nacional no primeiro governo Lula (Crédito: Cedoc/Seeb-SP)
Dieese faz cálculo do salário mínimo necessário para suprir uma família de quatro pessoas: estudo serviu de base na luta que conquistou a valorização do piso nacional no primeiro governo Lula (Crédito: Cedoc/Seeb-SP)

“Toda a produção da entidade é voltada para municiar a luta por direitos sociais e trabalhistas e tem sido utilizada pelos mais diversos atores que atuam na defesa da dignidade humana”, informa o balanço 2024 do Dieese. “Assim, tanto os indicadores produzidos pela instituição – como os de custo de vida; de emprego, desemprego e renda; greves e negociações coletivas de trabalho – quanto as análises e reflexões sobre os mais diversos temas relativos ao trabalho e às condições de vida dos segmentos mais vulneráveis da população são instrumentos para o fortalecimento da luta do movimento sindical e social no Brasil, bem como para o avanço das políticas públicas em prol dos menos favorecidos.”

Estrutura nacional

O Dieese conta com uma equipe multidisciplinar de cerca de 200 trabalhadores composta por economistas, sociólogos, estatísticos, administradores, pesquisadores de campo e especialistas em temas sobre o mundo do trabalho prestando suporte ao trabalho técnico em escritórios regionais de 17 estados brasileiros.

Por meio do Sistema de Acompanhamento de Informações Sindicais (Sais-Dieese), levanta e sistematiza informações sobre salário, pisos salariais, negociações coletivas, greves. Tais dados são organizados em banco de dados e divulgados em estudos, em intervalos regulares desde a década de 1980.

A instituição mantém 37 subseções (unidades dentro de entidades sindicais) e atualmente sete observatórios do trabalho (divisões que atendem prefeituras e governos estaduais, para subsidiar o poder público com pesquisas e análises), e um da economia solidária.

Em 2012 foi criada a Escola Dieese de Ciências do Trabalho, que oferece um amplo catálogo de mais de 500 horas de cursos sobre questões da economia, da negociação coletiva, do mundo do trabalho, da ação sindical.

Desafios ao lado da classe trabalhadora

Com 70 anos de uma rica história, o Dieese segue sua missão de produzir e difundir conhecimento sob a ótica dos trabalhadores, de olho nos desafios do futuro. É o que explica a atual diretora-técnica, Adriana Marcolino, terceira mulher no cargo assumido há pouco mais de um ano.

Adriana Marcolino (à direita), diretora-técnica do Dieese, em reunião com dirigentes bancários sobre direitos de pessoas com deficiência, no Ministério do Trabalho (Crédito: Cedoc/Seeb-SP)
Adriana Marcolino (à direita), diretora-técnica do Dieese, em reunião com dirigentes bancários sobre direitos de pessoas com deficiência, no Ministério do Trabalho (Crédito: Cedoc/Seeb-SP)

“Temos de garantir que a instituição esteja à altura dos desafios que o movimento sindical tem pela frente nesse momento histórico específico”, avalia a socióloga. “Nesses 70 anos o Dieese passou por muita coisa e conseguiu apoiar o movimento sindical e várias lutas democráticas de relevância nacional. O desafio é continuar atendendo essa demanda sindical e social por conhecimento, por dados que partam da lógica da classe trabalhadora, das necessidades da classe trabalhadora. E que garanta também a democratização do acesso à informação e a conhecimento científico de qualidade nessa perspectiva da classe trabalhadora.”

Os desafios são grandes. “O mundo do trabalho frequentemente passa por transformações e nesse momento a gente tem vivido um conjunto grande de transformações. Seja na questão das inovações tecnológicas, particularmente na inteligência artificial, seja a questão da necessidade de o movimento sindical pensar a transição ecológica. Ou ainda de como a gente reverte essa forte fragmentação do mundo do trabalho que resulta em precarização e dificuldades adicionais para a organização da classe trabalhadora” avalia Adriana. “E dar conta de produzir elementos sobre esses temas, com olhar nacional, mas também com olhar regional – o Brasil é um país continental e o mercado de trabalho do Sudeste não é o mesmo do Nordeste – e dessa forma cumprir a missão que lhe foi dada 70 anos atrás.”

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