Bancária e dirigente sindical quando esse era um universo preponderantemente masculino, mãe solo, lutadora incansável, Glorinha inspira uma geração de mulheres
Maria da Glória Abdo era capaz de juntar numa mesma pessoa e praticamente ao mesmo tempo doçura e dureza, braveza e carinho, alegria e seriedade. Tudo isso tendo como base a dignidade, a generosidade e a disposição para lutar pelos que mais precisam nesse país. Não por acaso, ela figura entre os primeiros integrantes do Partido dos Trabalhadores (PT), fundado em 1980.
A ex-presidenta da Associação dos Bancários Aposentados de São Paulo (Abaesp), entre 2013 a 2017, dedicou a maior parte dos seus 81 anos de vida ao movimento sindical. Glorinha, como era conhecida pelos mais próximos, morreu num domingo, 6 de setembro de 2020, durante a pandemia da covid-19, depois de anos de tratamento contra um câncer. E deixou um legado que inspira uma geração inteira de mulheres dirigentes sindicais.
“Glorinha era fera, em todos os sentidos”, lembra a presidenta do Sindicato, Neiva Ribeiro, que conviveu com Glória durante pelo menos duas décadas. “Incansável diante de qualquer injustiça, feminista antes de essa palavra ter o sentido que adquiriu ao longo da história, sindicalista daquelas para quem não há dia nem hora para lutar. Foi inspiração e exemplo para mim e tantas outras dirigentes que estamos hoje em posições de comando no movimento sindical.”
Isso porque, Glória Abdo também resistiu a muito para chegar onde chegou. Nascida em dezembro de 1938, em Ponta Porã (MS), radicou-se em São Paulo em 1960. Ingressou em um concurso da Caixa Econômica estadual, a hoje extinta Nossa Caixa, e começou a trabalhar em 1964 no prédio da Rua 15 de Novembro, no Centro Velho. Era, então, filiada ao Partido Comunista Brasileiro, o antigo PCB.
Suas muitas décadas de luta em defesa dos trabalhadores por justiça social e seu engajamento nos movimentos sociais a levaram a ser agraciada, por indicação do ex-presidente do Sindicato e então vereador Augusto Campos (PT – 2001 a 2004), com o título de Cidadã Paulistana.
Glória, feminista e socialista, combinou todo esse ativismo político com a criação de duas filhas nascidas de “produção independente”, como gostava de salientar. No banco, organizava a luta em prol da licença-maternidade, de creche para as crianças. Reivindicações que hoje são parte dos direitos das trabalhadoras.
Filhas e admiradoras, com orgulho
Claudia e Vanessa são os resultados dessa “produção independente”. Ter sido mãe solteira por duas vezes, uma em 1967 outra em 1980, era motivo de orgulho. Glorinha amava ser mãe e avó.
As filhas foram ouvidas pelo Sindicato, nas comemorações dos 100 anos da entidade, e lembraram com emoção da mãe que estava sempre na luta, sendo forçada a, muitas vezes, deixar a maternidade em segundo plano.
“E hoje a gente tem muito orgulho disso, de ela ter feito toda essa história e a grandeza dela. Foi muito homenageada enquanto estava viva e ainda continua”, diz Claudia, com orgulho. “O legado dela não terminou.”
Para Vanessa, a mãe e o microfone são indissociáveis. “Lembro que na adolescência eu tinha pavor dessa coisa do movimento sindical, tinha vergonha, eu ficava super constrangida”, conta. “Tem uma história clássica que é eu voltando da escola de ônibus, quando eu tinha uns 15 anos, pegando a Consolação, a Paulista. Escutava um barulho de microfone, de movimento sindical chegando. E, naquela fase que adolescente tem, já ficava pensando: que não seja minha mãe. E ela gritava de cima do caminhão: filha, tudo bem! E eu pensava: que mico. Hoje eu sei o quão representativo é isso, que força!”
As duas reconhecem na mãe uma potência. “ Acho que como ela mesmo diria, foi ótima! Em todos os lugares que ela passou, é uma mulher muito inesquecível, brava, de um senso de humor muito inteligente. Uma mulher de luta, sem muita paciência. Acho que ela é muito autêntica, muito à frente do tempo dela, muito vanguardista”, ressalta Vanessa.
“Criava propostas, ia à luta. Fazia reuniões com ministros, com entidades representativas dos trabalhadores. Muitas das ideias dela foram acatadas”, relata Claudia, lembrando o programa Mais Médicos, o Estatuto do Idoso.
“A luta dela começou ainda na ditadura militar. Ela foi mãe solteira na década de 1970, era um escândalo, uma coisa absurda. E tudo ela transformava em luta: em favor das mulheres, das minorias”, afirma a filha mais velha. “A vida dela foi sempre lutar para que outras pessoas não passassem pelo que ela passou, porque ela sofreu muitos preconceitos. Não conseguiu, apesar da capacidade dela, ser promovida na Nossa Caixa. Sempre foi escriturária. Todas as vezes que ela estava disputando cargos com homens ou pessoas que não estavam na luta sindical, acabava não conseguindo a promoção. Ela se aposentou como escriturária, e sempre lutando. Então a gente tem muito orgulho da mãe que a gente tem. Acho que ela foi muito importante para a sociedade em geral”, completa Claudia.
Com os aposentados
Vanessa lembra que a mãe foi “convidada” a se aposentar pela Nossa Caixa. “O banco queria dar um tempo dela, uma liderança na ativa muito forte. Foi uma negociação, eu lembro muito bem disso. Ela falou: ah, então tá bom, eu aceito ser aposentada.”
Glorinha seguiu sendo liderança, mas agora dos trabalhadores aposentados. Convidada a ajudar a organizar esse segmento dos trabalhadores nos anos 1990 – por Gilmar Carneiro, então presidente do Sindicato – ela construiu um grande capital político e humano, ressalta reportagem da Rede Brasil Atual. E fez da Abaesp ponto de referência da luta em defesa da população idosa. “Ela colocou todas as forças dela nessa luta. Virou a grande bandeira da vida dela por 30 anos.”
O Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003), por exemplo, sancionado pelo presidente Lula no primeiro ano de seu primeiro mandato, tem um tanto de Glória Abdo. Com 20 anos completados em 1º de outubro de 2023 (Dia Internacional da Pessoa Idosa), o estatuto é fruto de muita luta. E o Sindicato fez parte dela, ao lado da Abaesp.
Glorinha e o diretor social da entidade Arnaldo Muchon sempre cobravam dos ministros Luiz Gushiken e Ricardo Berzoini a sanção do projeto. Ex-presidentes do Sindicato, Gushiken e Berzoini eram, em 2003, ministros de Lula na Secretaria de Comunicação e na Previdência Social, respectivamente. O reconhecimento foi tanto que Glória e Muchon foram convidados para a cerimônia de sanção da lei que criou o Estatuto do Idoso.
Mulher de vanguarda, a ex-presidenta da Abaesp defendia, há mais de dez anos, a regulamentação da profissão de cuidador de idosos. E isso deve ocorrer agora, com a lei que estabelece a Política Nacional de Cuidados, sancionada pelo presidente Lula no dia 23 de dezembro de 2024. Ela tratava, ainda, sobre políticas para pessoas idosas na cidade de São Paulo, na gestão do prefeito Fernando Haddad (2013 a 2016).
Glória era de luta. E de festa. Gostava de conversar, de namorar, comemorar. Toda última sexta-feira do mês, enquanto foi presidenta da Abaesp, reunia companheiros de sua geração no baile dos aniversariantes do período. Mas ficava brava quando frequentadores afoitos passavam da hora de fechar o salão, às 18h. Exceção feita aos mais jovens do Sindicato, cuja sede é vizinha à da associação, na Rua São Bento. Glória ficava feliz quando os companheiros pediam emprestada a mesa de sinuca para praticar depois do expediente.
Sindicato Cidadão
No Sindicato, Glorinha foi uma das defensoras da ideia de que as entidades sindicais tinham de usar sua representatividade para influenciar a vida dos trabalhadores inclusive fora de seus locais de trabalho, como cidadãos. Ou seja, pioneira também do conceito de sindicato cidadão que marcou a reinvenção do movimento trabalhista após a redemocratização, lembra reportagem da Rede Brasil Atual.
“Este sindicato é um sindicato que nós podemos chamar cidadão, porque se envolve não só nas questões salariais dos bancários como também se envolve nos assuntos da cidadania e da democracia. Foi um dos que mais lutou contra a ditadura e luta ainda hoje contra este governo que está aí, de uma pessoa que não tem capacidade de governar”, dizia.
Glória se referia a Jair Bolsonaro. “Era tão intensa a vivência dela com a política, que quando o Bolsonaro ganhou, quando foi anunciado, ela infartou”, lembra a filha Vanessa. “Acho que ela previu as atrocidades que viriam principalmente para a classe trabalhadora, para os idosos.”
E, para ela, era um impacto como mulher, avalia Claudia. “Era um retrocesso. Anos e anos de luta e ela viu que ia retroceder muito. Foi muito difícil.”
Glorinha não viu Bolsonaro entrar para o lixo da história e Lula ser reeleito honrando compromissos tão caros à luta que ela promoveu por toda a vida. Mas de algum lugar deve estar festejando um presidente da tal “melhor idade” – termo que ela abominava – chegar novamente ao poder.
Em 2021, Maria da Glória Abdo foi homenageada durante as conferências estadual e nacional dos bancários, por tudo que seu trabalho significou para toda a categoria e para todos os cidadãos brasileiros.