Você também pode fazer parte da história de mais de três décadas de combate à fome, à miséria e luta pela vida, dessa entidade mantida por bancários e associados
Se o Brasil foi artífice da inédita Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, oficialmente lançada em 18 de novembro, na Cúpula de Líderes do G20, no Rio de Janeiro, muito se deve a importantes precursores. A Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida, criada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, em dezembro de 1993, está até hoje entre os principais combatentes desse descalabro que assola o Brasil e o mundo.
Em nosso país, pelo menos 64 milhões de pessoas vivem algum grau de insegurança alimentar, ou seja, não sabem se terão o que comer. E 37% dos lares brasileiros têm crianças entre 0 e 4 anos nessa situação. São 8,7 milhões de brasileiros passando fome no Brasil (dados do IBGE).
Foi diante de números como esses que há 31 anos os bancários decidiram se movimentar e criar o Comitê Betinho de Funcionários do Banespa. A inspiração vinha da campanha Natal sem Fome, da Ação da Cidadania. “Nós não estamos diante de uma simples campanha, mas sim diante de um movimento”, disse Betinho, em 1994. “Um movimento que não tem comitê central, que não deve obediência a nenhuma pessoa. Um movimento que pode mudar esse país.”
E certamente esse movimento contribui para avanços inimagináveis naqueles anos pós ditadura civil militar. Até chegar aos dias de hoje, em que o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, vindo do movimento sindical – e que em 2004 já havia conseguido tirar o Brasil do Mapa da Fome –, preside a reunião dos líderes das 20 maiores economias do mundo e anuncia essa Aliança Global com R$ 145 bilhões em caixa para combater a fome no planeta.
Gente que se importa
Na década de 1990, havia no Brasil 32 milhões de brasileiros vivendo abaixo da linha da pobreza. E o Comitê Banespiano – Ação da Cidadania pela Geração de Emprego e Renda e Profissionalização Contra a Fome e a Miséria arregaçou as mangas. A princípio, as doações vinham dos empregados do antigo Banco do Estado de São Paulo, o Banespa, e de entidades como o Sindicato dos Bancários de São Paulo, que sempre manteve sua estrutura à disposição dessa luta.
Depois da morte de Herbert de Souza, em agosto de 1997, o grupo passou a se chamar Comitê Betinho, como forma de homenagear esse grande intelectual e combatente das causas sociais. São 31 anos de atividades ininterruptas que demonstram o espírito de solidariedade e de cidadania dos funcionários aposentados do Banespa, fundadores do Comitê que mensalmente contribuem financeiramente com a entidade, informa o site da entidade.
“A gente começa o Comitê Betinho a partir da grande proposta do Betinho nos anos 1990 que era tirar aqueles 32 milhões de pessoas que estavam abaixo da linha da pobreza. Montamos o comitê com pessoas do Banespa”, lembra o banespiano, José Osmar Boldo, atuante desde o início no projeto e atualmente tesoureiro do Comitê.
“Arrecadávamos vale-refeição, que eram uns talões que pareciam talões de cheque. Eu corria o banco. Haviam representantes por departamento. Uma coisa meio maluca, mas muito prazerosa. As pessoas nos recepcionavam de braços abertos. O cara recebia o vale-refeição dele e já arrancava um vale do talão e passava para a gente. Depois trocávamos por dinheiro para comprar cesta básica, atender as entidades. Na época era essa questão de alimentos, era um caminhão de alimentos por mês. Uma coisa muito grande. Começamos a financiar escolas de datilografia, investir para a geração de empregos com cursos para adolescentes”, lembra o dirigente.
“A convite do Gilmar Carneiro (então presidente do Sindicato), participei, na CUT, de uma reunião com o Betinho, bem no início da Ação da Cidadania”, relata o diretor presidente, José Roberto Vieira Barboza, sobre o encontro que deu início ao projeto do Comitê, em 1993. “Lembro que perguntaram a ele se movimento de solidariedade não seria incompatível com as lutas sindicais. Ele respondeu que não, pois o exercício da solidariedade é algo inato ao ser humano e que os sindicatos deveriam se abrir à sociedade, envolvendo-se com a situação de miséria, mas também de assuntos que dizem respeito aos trabalhadores: qualidade do ensino, a questão da saúde, do meio ambiente, dentre outros.”
Boldo recorda dessa fase. “Como nós éramos muito ligados ao trabalho sindical – vou para a diretoria do Sindicato – vem esse debate do Sindicato Cidadão. Não era só a questão do salário do bancário. Quando nós íamos fazer reunião nos locais de trabalho, nós discutíamos também a qualidade da saúde na cidade, no estado, a condição de vida da população, as questões do bancário na região onde ele morava. Foi uma fase muito importante e o comitê estava muito incluído nisso.”
Betinho dizia que um erro que a CUT e demais centrais não poderiam cometer seria o desvio de tentar substituir o Estado, pois a este cabe instituir políticas públicas. O papel do movimento sindical seria o de ampliar sua atuação e cobrar a implantação de políticas públicas pelos governos.
Parcerias fundamentais
E assim foi. Dentre os parceiros de mais de três décadas dessa luta está o Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região. “O apoio ao Comitê Betinho diz muito sobre nosso conceito e nossa prática de Sindicato Cidadão. Somos uma entidade viva, participante da sociedade e que busca atuar em todas as frentes que fazem diferença na vida da categoria bancária, que é extremamente solidária à luta do combate à fome. E demonstra isso todos os anos, nas nossas campanhas de arrecadação do Bancário Solidário”, diz a presidenta do Sindicato, Neiva Ribeiro.
Bancários do ABC, de Bragança Paulista, de Campinas, Catanduva, Guarulhos, Jundiaí e Pernambuco estão também entre os financiadores do Comitê. “Por meio das divulgações do Sindicato dos Bancários de São Paulo, aos poucos ganhamos adesões de outros sindicatos e da CUT Nacional. Também as associações de bancários continuam apoiando o Comitê”, conta José Barboza. “Afubesp e Afabesp, do Banespa, atual Santander. A Afabb, do Banco do Brasil. Apcef e Fenae da Caixa Federal. Temos duas empresas que nos apoiam há anos: Auto Shopping Global e a Personal Cob. Assim como pessoas físicas mensalistas e aqueles que depositam ocasionalmente.”
São em torno de 900 associados. “Alguns com a gente desde o início e continuam contribuindo assiduamente todo mês com o Comitê”, agradece Boldo.
José Roberto avalia que a transparência é um dos segredos do sucesso do Comitê. “Prestamos contas periodicamente. Os primeiros informativos foram feitos pelo Sindicato Bancários São Paulo e rodados gratuitamente na antiga Bangraf. A contabilidade do Comitê recebe auditoria externa, em parceria com a Sacho Auditores Independentes, que também é nossa parceira no projeto.”
A gente não quer só comida
Antes da metade desses 31 anos, o Comitê começa a fazer uma mudança em seu perfil. “Além de trabalhar com comida, matar a fome, fazer com que as pessoas pudessem caminhar com as próprias pernas. Investir em cursos, financiando professores, brinquedotecas em hospitais públicos, a questão do idoso”, recorda Boldo.
“A gente foi ousado, montou escola de informática em seis presídios no estado de São Paulo. O projeto de brinquedotecas que começou na gestão da Marta Suplicy, e continuou com o José Serra, reuniu a nata da literatura infanto-juvenil: Maurício de Sousa, Ruth Rocha, Tatiana Belinky… E vai indo assim. Dá alegria de a gente participar desse movimento”, conta José Barboza, lembrando a área de lazer montada por eles no Presídio Feminino de Santana, em São Paulo, em parceria com a Pastoral Carcerária, a Apcef-SP e a Abrinq. “Antes da gente, as mães recebiam as crianças no cimento e colocava uma colcha, um cobertor, para a criança ficar. Mas para os pequenos, os bebês. Os filhos maiores ficavam no ostracismo. Como a gente tinha feito a escola de informática, a Pastoral Carcerária nos procurou e fizemos um negócio bonito. Está lá nossa sementinha.”
A construção de cisternas deu uma guinada no Comitê. “Nós fomos pioneiros aqui em São Paulo de trazer esse debate. Fizemos um grande encontro na Faculdade do Largo São Francisco, em 1998, trouxemos pessoas do Nordeste, um engenheiro agrônomo da ONG Caatinga, de Pernambuco, para fazer esse debate aqui. Jogamos na nossa rede de contato, o que significava São Paulo estar participando da construção de cisternas. Hoje estamos com mais de 1.500 cisternas construídas na Bahia, no Ceará, em Pernambuco, no Maranhão, o que nos dá um prazer muito grande. Ouvimos um depoimento que muito nos honra: lá no Piauí nós fizemos mais cisternas que o governo Bolsonaro em todo os quatro anos dele.”
Assim, o Comitê teve muitas fases: a do alimento que foi o início e segue até hoje, a fase da geração de emprego e renda, a fase das brinquedotecas (foram mais de 50 em São Paulo), as cisternas, as fases de emergência, como a que se abateu sobre o povo do Rio Grande do Sul este ano e o Comitê Betinho se apressou em ajudar. “Fizemos o Natal sem Fome numa primeira fase, e depois transformamos em Natal sem Fome e com Livros. Foi uma fase muito gratificante para nós, distribuímos milhares de livros.”
O Natal sem Fome e com Livros: autores se somaram à campanha que queria comida nos pratos e literatura nas cabeças das crianças (Crédito: Mauricio Morais)
Compromisso com a fraternidade
Zé Roberto e Boldo são dois rostos que se fundem a essa trajetória de mais de três décadas. Uma dedicação amorosa, como de tantas outras pessoas cidadãs, que enche o coração de alegria.
“Participar do CB me traz muitas alegrias, pois vejo ao vivo a vitalidade da sociedade civil, que com muita garra e determinação, faz das tripas o coração para atender as demandas possíveis”, diz Zé. “Emocionei-me ao verificar ao vivo, a relevância das cisternas, nas vidas dos sertanejos. Perceber a gratidão deles e as mudanças que esses reservatórios fazem nas vidas deles, nos inspira a continuar o trabalho.”
Zé lembra do exemplo da mãe, com emoção. “Ela ajudava todo mundo. E tive o privilégio de herdar isso dela. Sempre gostei de ajudar as pessoas. Depois, na militância, a gente ganha amplitude no conceito da vida: por que tem miséria, concentração de renda. Enfim, faz bem para a alma trabalhar pelo Comitê.”
E, muito importante, destaca o dirigente: “Esse trabalho, me deu um irmão, o Boldo: estamos juntos desde o início dos trabalhos.” Ou, mais que irmãos, companheiros, diz Boldo, que começou seu ativismo via Comunidades Eclesiais de Base. “Depois eu começo um trabalho mais político nos núcleos de base aqui em São Paulo. E o Comitê dá uma baita alavancada, porque a gente começa a enxergar as coisas mais na figura do outro. Sai um pouco da gente e começa a se preocupar com o outro, com o bairro da gente, com aquele que é mais necessitado.”
Alimentos chegam a quem precisa, seja na cooperativa de catadores, em São Paulo, ou em Eldorado do Sul, para ajudar a diminuir a fome na tragédia que se abateu sobre os gaúchos em 2024
Boldo lembra que o Comitê sempre teve esse compromisso da mudança, não só dar, mas fazer com que as pessoas enxergassem melhor a questão ética, da solidariedade, do compromisso. “E 30 anos não é pouco. Em todo esse tempo acumulamos uma experiência na área da solidariedade, da fraternidade até. Muitos falam que ser solidário não é ficar dando as coisas para o outro. Mas na hora da emergência, da fome, é sim. É atender o outro na emergência.”
E o Comitê nunca ficou só na emergência. “Isso sempre me cativou: cuidar do outro, da pessoa que está mais necessitada”, diz emocionado. “E juntando forças, como nós fizemos no Comitê, se estou sozinho é uma coisa… Eu me senti muito fortalecido ao lado dos meus companheiros de Comitê todo esse tempo. Uns já se foram, muitos passaram pelo Comitê, alguns ficaram e juntos sempre tivemos esse compromisso de mudança. Primeiro da gente, ser mais solidário, mais fraterno, enxergar melhor a questão da pobreza e mudar isso. E o compromisso de estar sempre fazendo, não desistir.”
Foram formados três mil comitês no Brasil na época do Betinho. Alguns se transformaram em ONGs, mas centenas fecharam. “E nós não. Nós ficamos sempre nessa luta, sempre um apoiando o outro para que isso não se enfraquecesse. O Comitê está enraizado nas nossas vidas. E está muito vivo, muito cheio de energia e a gente acredita que enquanto a gente tiver vontade, coragem, vamos estar aí dando atenção àqueles que mais precisam. Estamos aí nesse compromisso contra a fome, pela miséria, pela vida, na busca de uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais solidária. E isso me cativa a ter ficado esses 31 anos e a ficar mais.”